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"isso é escrever. tira sangue com as unhas. e não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. você não está com medo dessa entrega? porque dói, dói, dói. é de uma solidão assustadora. a única recompensa é aquilo que laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. essa expressão é fundamental na minha vida."
(caio fernando abreu)

domingo, 25 de abril de 2010

páginas de adelaide


era um dia de novidade, de esperança.

ela sabia que ele estaria lá e que talvez aquela noite fosse uma noite sem igual. o ano está passando rápido demais, constatou ela. constatou com clareza porque tinha o costume de arrancar as folhas da agenda quando os dias já tinham se tornado “ontem demais” para continuar pesando em sua bolsa.

tinha esperança não só porque ele estava lá (o que bastava para ela já que seus dias eram consumidos pela vontade de se achegar a ele), mas porque ela acreditava que poderia deixar aquela página intacta, já que de vez em quando é bom ter “ontens” para se carregar na bolsa.

o dia passou como outro qualquer, como aqueles em que a página vai parar na lixeira no final do dia. adelaide, a "ela", se adornou como nunca - colocou de lado sua baixa auto-estima e, pela primeira vez, acreditou em si: batom cor de carne, sombra pérola-negra, perfume com notas transparentes (qualquer ponto em comum é mera coincidência) e treinou horas-à-fio com o espelho um discurso de aproximação.

é, não tenho como fugir, indagou. é agora (preferiu deixar o “ou nunca” para um outro momento).

adelaide emergiu no salão, e silenciosamente podia-se ouvir um "oooh". entre saudações, burburinhos (o que ela faz aqui?), polaróides urbanas e espasmos, seus olhos não viam nada nem ninguém além dele. o ambiente era escuro, faiscado por alguns néons e sons, mas a sua figura era demasiadamente mais atraente que tudo... seus olhos eram como faróis fortes em uma estrada escura... hipnotizante.

alto, mediano, moreno, olhos de piedade, mãos compridas e sorriso cheio de dentes... haveria, pois, exemplar mais desejável? ele não usava perfume, mas o seu cheiro invadiu os olhos de adelaide e sua boca, pela primeira vez, chorou. bastou apenas um encontro de olhares para que seus pés (como havia calculado por a+b o dia inteiro) gravasse no meio do salão uma cratera que nem mesmo um terremoto com 9,8 pts na escala richter conseguiria provocar e... desde daquele momento, ela saberia que o silêncio e a impotência a tomaria por completo.

adelaide procurou a noite inteira se achegar, procurar de alguma forma sentir aquele cheiro sem sabor, aquele sabor sem gosto e aquele gosto sem sal, aquele sal sem mar... mas, o silêncio se fizera a partir do momento que ela se deixou perder a esperança.

tudo que adelaide queria era escrever na agenda era: “ele cantou para mim! ele cantou a minha música...”

“o que eu entendo por ser meu,
é tudo o que eu posso te dar...
o meu amor, mas primeiro eu
preciso saber se você vai gostar
deixa o sentimento te falar
vou mostrar que sou alguém melhor
não vai se arrepender
porque eu não vou deixar você chorar por mim
do meu lado, agora em mim”¹

mas isso não aconteceu. ela até chegou a sentar do lado dele, mas...  nem um pio sequer que seja rompeu da boca de adelaide para ele. e a noite silenciosa continuou: sem ré com sétima, sem fá, sem bemol, sem mi menor e, sobretudo, sem dó.

coitada de adelaide... e, diferente fim não foi dado a coitada da página, que fora arrancada sem dedicatórias, como todas as outras.

¹: adelaide - mombojó



adelaide é aquela que quer ter a agenda inteira.

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